Cantora lançou oitavo disco, ‘Cowboy Carter’, em 29 de março; lançamento levanta questões apagadas pela branquitude

(Originalmente publicado no portal Pretessências)

“Este não é um álbum de country. É um álbum de Beyoncé”, declarou a cantora em postagem no Instagram no dia 19 de março. O post, de certa forma,  confirmava a espécie de teoria defendida igualmente pelos fãs e pela imprensa de que, seguindo a trilogia iniciada pela incursão pela house music no álbum Renaissance (2022), Beyoncé se aventuraria por mais um gênero musical que havia se tornado sinônimo da branquitude americana: a música country e suas subdivisões. Entretanto, ela garantiu: fará o country do seu jeito.

No mesmo comunicado, a cantora revelou que o trabalho vinha sendo preparado há cinco anos, depois de uma experiência desagradável em que não se sentiu bem-vinda. Os fãs logo trataram de ligar os pontos: em 2016 e ao lado das The Chicks, Beyoncé havia cantado a faixa Daddy Lessons na premiação mais tradicional do country dos EUA e fora recebida com insultos racistas tanto em pessoa como na internet, a despeito de tê-los dado os quinze minutos de maior audiência de sua história. Se a boa arte nasce da dor, Beyoncé teve combustível para outro trabalho com profundidade analítica e responsável por levantar discussões antes relegadas ao jornal e aos circuitos de militância e pesquisa.

Beyoncé para o álbum Cowboy Carter
Divulgação

Esse simples argumento desmonta a ideia de que o racismo é uma coisa do passado; em plena era da retomada da democracia (para quem, afinal?), temos exemplos diários de absolutamente todos os tipos de violência contra pessoas negras, não poupando nem mesmo os bilionários e suas crianças, como a própria cantora vaticinara em seu Lemonade (2016), para ficar na seara da música pop.

Dez dias depois do comunicado, em 29 de março, Beyoncé nos presenteava com seu oitavo álbum de estúdio, Cowboy Carter. Nesse lançamento, ela mergulha profundamente na sonoridade country, homenageando suas raízes e desafiando as normas do esperado, tanto para a imagem que se tem dela, quanto para o gênero em que se baseia o disco.

É um chavão da crítica apontar que determinado artista “desafia as normas”. Mas que normas são essas capazes de subversão? É possível notar nas 27 faixas que Beyoncé reivindica o legado negro da música country. O gênero tem raízes profundas na África Ocidental, onde teve origem o banjo, instrumento fundamental no country. Nos Estados Unidos, a segregação racial apagou a contribuição significativa de artistas negros para o gênero. Com Cowboy Carter, Beyoncé resgata essa história e celebra a diversidade.

Na primeira faixa, “American Requiem”, Beyoncé cria, ao lado de seus colaboradores, entre eles o jovem e talentoso multi-instrumentista Jon Batiste, uma prece para pensar uma nova “América”. O ato litúrgico que abre o chitlin’ circuit reza para compreender o estado do pensamento coletivo americano. Beyoncé pergunta: “podemos defender alguma coisa? Você pode me suportar?”, apontando a questão para a branquitude como parte integrante da sociedade. E continua: “é hora de enfrentar, não é hora de fingir, mas de deixar o amor entrar”.

Ainda em seu réquiem, aponta para seus detratores: “Diziam que eu falava ‘muito caipira’, mas veio a rejeição e disseram que ‘não falo caipira o bastante’, que não pertenço a esse mundo. Mas se isso [o disco] não é country, o que mais é?”,  finalizando com o vaticínio de que ali enterra as ideias passadas do ideal do homem branco.

Beyoncé para Cowboy Carter
Divulgação.

Uma peculiaridade de Cowboy Carter é a notável presença de artistas brancos que ela admira. Vejo isso como um convite da cantora para uma construção conjunta de um pensamento verdadeiramente justo e igualitário. Ao mesmo tempo, ela retoma e não deixa de reforçar a narrativa para as cantoras negras de country que também estão presentes. Isso fica mais notável, por exemplo, nas artistas que acompanham Beyoncé na sua versão de um clássico dos Beatles, “Blackbird”. Originalmente gravada para o “álbum branco” dos ingleses, foi composta por Paul McCartney nos anos 1960 na explosão da luta pelos direitos civis da população afro-americana e sua luta pelo direito de estudar.

Para entoar o canto desses pássaros, nada mais coerente que Beyoncé convidar suas mais novas contemporâneas Tanner AdellBrittney SpencerTiera Kennedy e Reyna Roberts. Muito tem sido questionado, todavia, se o sucesso comercial da aventura pelo country significaria mudanças tangíveis para outros intérpretes racializados do gênero ou se limitaria ao “fator Beyoncé”. Informações cedidas pela plataforma de streaming Spotify apontam que, no caso da cantora Tanner Adell, mesmo antes de sabermos de sua participação no disco, os plays de suas faixas “Buckle Bunny” e “Trailer Park Barbie” apresentaram um aumento de 305% e 130%, respectivamente. Somente o tempo será capaz de dizer se a mudança veio para ficar, entretanto.

A criatividade e a versatilidade do repertório do disco podem depor contra o argumento da consistência e da coesão, embora também possam ser vistas como testemunho da própria mutabilidade do gênero, como aparecem traços de bluegrass, folk e mesmo um beach rock, que nos leva aos samples valiosíssimos de hits de Nancy Sinatra e dos Beach Boys na esfuziante “Ya Ya” e suas firulas sessentistas retro chic que gritam para ser música de trabalho e divulgação.

Lendas do country como Dolly Parton e Willie Nelson contribuem para a festa do peão pop com seus trabalhos. Dolly e sua efervescência característica aparecem como uma espécie de mensagem de áudio rememorando e comparando a “Becky do cabelo bom”, a (suposta) amante de Jay-Z, à sua rival de outrora, “Jolene”, que ressurge na voz de Beyoncé com muito mais contundência, versos novos e o apoio moral da sempre infalível gaita de Stevie Wonder. Willie Nelson, por sua vez, empresta seus graves para sua locução de um programa de rádio AM que antecede faixas regadas ao banjo, ao acordeon, o bandolim e mesmo ao R&B, marca registrada da cantora.

A nostalgia aparece na hora de reverenciar os grandes e as grandes pioneiras do country negro e suas adjacências, como o blues e o próprio rock, em Chuck Berry na forma de música incidental, ou a lenda viva Linda Martell, a primeira mulher negra a se apresentar na tradicional feira americana Grand ‘Ole Opry nos anos 1960 e enfrentar rejeição similar à de sua pupila, que enfrentou a plateia igualmente racista cinco ou seis décadas depois. Linda inclusive brinca, em um interlúdio, dizendo “gênero musical é um conceito um tanto confuso, não é?”, o que dialoga diretamente com as palavras de Beyoncé em release para a imprensa: “o prazer de fazer música é exatamente o de não haver regras”.

Regras não são seguidas em momento algum do disco, que se orgulha de suas tantas possibilidades e se refestela na verve criativa de todos os envolvidos, inclusive as unhas de Beyoncé, que servem ao arranjo e à harmonia de uma faixa, rememorando Dolly Parton e Patti LaBelle e sua disputa sonora de unhas de acrigel nos anos oitenta. A música é infinita.

Entre o sample de um funk carioca e a cantora Miley Cyrus, Cowboy Carter bebe com vontade de suas fontes inesgotáveis e ainda assim norteia o ouvinte para uma experiência vasta, sensorial e extravagante de um futuro ilimitado, muito possível e palpável. Basta celebrar.

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