É sempre complicadíssimo falar de um filme extremamente comercial no auge da sua explosão de popularidade. Corre-se o risco de pegar carona nas emoções e até mesmo na percepção de terceiros. Mas é sempre gostoso, também. O assunto da vez, como não poderia deixar de ser, Barbie.
Antes de partir para o filme em si, é necessário que eu esclareça alguns pontos. Para MIM, é óbvio que se trata de um filme-propaganda do produto. A Mattel é uma empresa que derruba qualquer concorrência por todo tipo de capital simbólico: capital econômico e também capital social. Uma crítica socioeconômica da Barbie como produto é sempre imprescindível, mas é igualmente importante perceber que, embora tenha contribuído direta e ativamente, como escreveu a escritora M. G. Lord em 1995, a “Barbie é mais um sintoma que uma causa“. E como sintoma, ela também é causa, e assim segue a reação em cadeia.
Tudo parecia que a Barbielândia caminhava para mais um dos seus infinitos e eternos dias perfeitos, em que um é sempre melhor que o outro. O filme é um paraíso para a visão. O cenário hiper-surrealista é um show à parte. Um detalhe bacana: as ações das bonecas e dos bonecos antropomorfizados refletiam, até o momento, ações das pessoas brincando com eles, manipulando-os. Até que chega o Apocalipse: a Barbie-mãe, o esqueleto, a maquete zero ganha o que se teme na vida de plástico: consciência.
Não faria sentido que outra Barbie sofresse um choque existencial que não a Barbie Estereotípica, a imagem tradicional da boneca. Porque ela foi o monólito, a imagem civilizada do que deveriam almejar ser as baby boomers. Uma mistura de Deusa-Mãe do Neolítico, o patriarcado tentando sugar a mística feminina e economia ultra-liberal.
Barbie recorre à sua Barbie meio Bruxa do Mar para entender seu defeito tão repentino, uma boneca cobaia, em quem as crianças descontam sua verve mecânica, artística e modernista. Evocando as pílulas de Matrix, a Barbie Esquisita lhe dá, então, a orientação de, vejam que horror, calçar as sandálias da humildade e quase da batalha de Jericó para entender, pelo mundo real, o que há de errado na terra do pink.
Barbie não parte sozinha: ao seu lado, vai o nada requisitado Ken Estereotípico, um rato de praia, bronze artificial e emasculado que não sabe lidar com o “matriarcado” em que acredita viver: suas inquietações precedem o Gênesis da boneca; ali, a mulher nasceu primeiro e o homem veio de sua costela para acompanhá-la junto de seu cachorrinho, suas profissões e seus acessórios mil. Ken tem vontade de pertencer; a Barbie quer entender a que pertence.
Alguns personagens não fariam falta alguma à narrativa, como o CEO que é um “capitalista bem-intencionado”, o secretário que é tão ignorado quanto Allan, o amigo (mui amigo) esquecido de Ken.
Num verniz de feminismo vendável, as cenas mais tocantes são lideradas por uma relação intransigente entre mãe e filha e suas diferentes percepções da Barbie social, criticando um sistema que a própria Barbie objeto alimenta e propaga. Mas não deixa de ser tocante; nem todo mundo tem o esclarecimento de nascença.
Às vezes o óbvio precisa ser dito, mesmo que ocasionalmente apoiado demais em piadas que disfarçam repetições. Às vezes, o que você precisa para se aperceber no mundo é perder o arqueamento dos pés. Isso te amadurece, mas antes te humilha.
Um filme delicioso, que sabe que não vai salvar o mundo. Não pretende denunciar nada muito profundamente, e que pode até tirar de você algumas lágrimas como tirou de mim, e que deixa uma mensagem positiva, estimulante e motivadora. Um alento, depois de anos de propaganda proto-fascista de super-heróis ufanistas.
O idílico da Barbielândia é a utopia, e é por isso que importa. Mas, como a Dorothy tanto afirmou, será mesmo que realmente não há lugar como a nossa casa?
BARBIE (2023)
Dir.: Greta Gerwig
Cotação: 💄💄💄💄 (de 5 💄)